Ricardo Soares de Oliveira, professor na Universidade de Oxford, faz um retrato profundo e crítico sobre Angola numa obra a publicar em Portugal este mês.
R icardo Soares de Oliveira, professor associado de política comparada na Universidade de Oxford, analisa a realidade angolana e, entre vários aspectos, refere a aposta numa internacionalização assente num «capitalismo de Estado», dinâmica fundamental do Estado paralelo desde 2002.
“A internacionalização da gestão de rendas e a reafectação de recursos do Estado na esfera internacional”, escreve no livro Magnífica e Miserável, Angola desde a Guerra Civil, a ser lançado em Portugal no final deste mês pela Tinta da China, servem o “favorecimento do regime e de interesses pessoais”.
“A internacionalização da Sonangol prosseguiu em ritmo acelerado desde o fim da guerra e, em particular desde 2004, quando as receitas provenientes do petróleo começaram a encher os cofres angolanos. Directamente, ou através das suas subsidiárias, a partir de 2013, as zonas de investimento da Sonangol incluíram o Brasil, o Iraque, Cuba, Venezuela, o sul do Sudão e a Argélia, além de Portugal. (…)
A estratégia da Sonangol é simples: a empresa alavanca os seus recursos e o seu papel de guardiã da economia interna de Angola (petrolífera e não petrolífera) para estabelecer parcerias no estrangeiro. A maioria dos parceiros estrangeiros da Sonangol já são parceiros de Angola, enquanto outros encaram um acordo externo com a Sonangol como condição prévia para entrar no mercado angolano numa posição privilegiada. Esta política de “investimentos cruzados” é um objectivo angolano declarado: “se uma empresa de Portugal ou de outro país quiser investir em Angola, a Sonangol procurará investir no país em questão”.
Daqui ressalta outra característica que distingue a política de internacionalização da Sonangol de muitos outros veículos de investimento soberano. A maioria nega de forma veemente que as suas decisões são políticas, sobretudo se o forem claramente. Por exemplo, a manifesta preocupação do Fundo Soberano angolano criado em 2012, que deverá substituir a Sonangol como principal actor de investimento no estrangeiro, é garantir a rendibilidade, e a política nunca é mencionada. Os altos responsáveis da Sonangol, porém, têm referido abertamente que os objectivos políticos estão no centro das suas decisões.
A fúria compradora da Sonangol é igualmente política no que diz respeito ao padrão estrutural de associação entre os seus investimentos “estatais” e o cortejo de oligarcas angolanos que seguem na sua esteira. Em determinados momentos, assiste-se ao avanço de empresas “privadas” angolanas no momento ou pouco depois de a Sonangol se tornar um dos principais investidores. Noutros, a Sonangol actua por intermédio das empresas (como o BAI, o principal banco de Angola) de que é o principal accionista, mas em que os oligarcas detêm participações importantes.
Um parceiro constante do ímpeto internacionalista da Sonangol é muito revelador deste carácter político: Isabel dos Santos, a filha do Presidente. Através de um conjunto de diferentes veículos de investimento, Isabel é a principal investidora angolana no estrangeiro a seguir à Sonangol.
Apesar da sua natureza ostensivamente privada, os investimentos de Isabel contam com o maior apoio político. “Para mim, [a Sonangol e Isabel] são a mesma coisa: ambas trazem o selo de aprovação do Presidente. Quando negociamos com ela, sabemos que estamos a negociar com o Palácio”, afirmou um importante investidor português. Isto insere-se num padrão mais amplo de interesses empresariais oligárquicos: onde a Sonangol está, encontramos frequentemente Isabel dos Santos, Manuel Vicente, Kopelipa e outras figuras. A Sonangol é a figura de proa da internacionalização dos oligarcas.
O Fundo Soberano e o filho do presidente
A Sonangol foi, e continua a ser, de facto, o Fundo Soberano de Angola. Todavia, a partir de 2007, (…), o Governo angolano expressou o desejo de criar formalmente um Fundo Soberano como entidade separada. Para este efeito, o Presidente criou uma comissão formada por tecnocratas próximos do regime, encarregada de estudar diferentes modelos de Fundos Soberanos (…). Esta comissão era um órgão típico do Estado paralelo criado por José Eduardo dos Santos, coordenado a partir da Presidência sem consultar o Ministério das Finanças ou o próprio responsável pela pasta.
Entre os seus membros, contavam-se Archer Mangueira, à época conselheiro do Presidente para os assuntos económicos e actualmente responsável pela Comissão do Mercado de Capitais angolana, Francisco de Lemos, então executivo da Sonangol e posteriormente nomeado seu director executivo, e Ricardo Viegas de Abreu, antigo banqueiro privado e, mais tarde, vice-governador do BNA. Os elementos da comissão deslocaram-se aos Emirados Árabes Unidos, Brasil, China e Noruega, a fim de estudarem os diferentes modelos de Fundo Soberano e o seu funcionamento. (…)
Por fim, em Outubro de 2012, foi criado o Fundo Soberano de Angola (FSDEA), um órgão com grande visibilidade e o segundo maior de África, logo depois do seu congénere do Botswana. (…)
À luz dos padrões angolanos, o Fundo representou certamente uma novidade por enfatizar a centralidade da boa governação e a transparência das suas operações, e também por jurar lealdade e obediência aos princípios de Santiago que regulam as melhores práticas em matéria de Fundos Soberanos.
“O FSDEA foi criado com base nos critérios de referência internacionais e nas melhores práticas em matéria de governação. As actividades do FSDEA respeitarão os princípios fundamentais de responsabilização e transparência”, lia-se no comunicado de imprensa divulgado por altura do seu lançamento.
Apesar dos compromissos assumidos, o FSDEA foi imediatamente objecto de publicidade negativa. O aspecto mais polémico foi a escolha de José Filomeno dos Santos, também conhecido por «Zenú», o filho mais velho do Presidente e, de acordo com rumores persistentes, a sua escolha para sucessor, para ser um dos três elementos que compõem o conselho de administração do Fundo.
(…) Zenú marcou presença em órgãos de comunicação internacional, como a CNN, onde defendeu, num inglês correcto e fluente, que a sua nomeação se baseava nas suas qualidades pessoais e experiência. “Eu estou aqui como eu próprio”, declarou, podendo ler-se no portal do FSDEA na Internet que a nomeação assenta “unicamente no mérito”.
Não obstante a experiência de Zenú na área empresarial e os diplomas atribuídos por universidades britânicas, a sua nomeação foi acolhida com cepticismo. Outro ponto de discórdia é a relação entre o Fundo Soberano e a Quantum Global Investment Management, uma empresa suíça especializada na gestão de activos com ligações profundas à família dos Santos e dirigida por Jean-Claude Bastos de Morais, um empresário suíço-angolano que é amigo pessoal de Zenú.
(…) Sem que se tenha realizado qualquer concurso público para o efeito, a Quantum Global foi incumbida da gestão de uma parte significativa do Fundo (segundo algumas notícias, um total de três mil milhões de dólares dos cinco mil milhões inicialmente atribuídos ao Fundo Soberano; o FSDEA receberá também outros montantes adicionais provenientes dos excedentes anuais da Reserva Financeira Estratégica Petrolífera de Angola, embora, no momento da redacção deste livro, os pormenores a este respeito não tivessem sido ainda esclarecidos). Por fim, as promessas reiteradas de transparência viriam a revelar-se evasivas, já que remetem para a adopção de códigos voluntários difíceis de aferir.
O cepticismo inicial manteve-se vivo em 2013. Apesar das repetidas garantias de altos responsáveis governamentais de que a Sonangol deixaria de exercer funções próprias de um Fundo Soberano para voltar a dedicar-se à sua actividade principal, a verdade é que a empresa continuou a ter o controlo da já referida carteira de investimentos estrangeiros.
Tal significa que, nos próximos anos, Angola disporá, na prática, de dois Fundos Soberanos. Não existiu qualquer fricção com o FSDEA, pois o Fundo manteve-se praticamente sem actividade no período em causa, sendo a única excepção os rumores que davam conta da aquisição de imóveis caros no bairro londrino de Mayfair; a publicação da estratégia de investimento do Fundo Soberano foi adiada por diversas vezes. Após uma remodelação governamental que conduziu à nomeação de Armando Manuel, o primeiro Presidente do Fundo Soberano, para ministro das Finanças, Zenú assumiu a presidência do Fundo.
Na sua primeira intervenção pública nesta qualidade, Zenú anunciou finalmente a tão aguardada estratégia de investimento, não faltando a habitual declaração de compromissos no que se refere a uma série de investimentos de médio e longo prazo, tanto em Angola como no estrangeiro. Contudo, o investimento com direito a destaque — a construção de uma cadeia de hotéis — é um empreendimento com uma rendibilidade duvidosa que dificilmente se coaduna com o compromisso de promoção do desenvolvimento social assumido pelo Fundo. Em suma, não se sabe ainda se o Fundo terá uma função de desenvolvimento, qualquer que seja a sua definição. Todavia, considerando apenas os recursos que lhe serão afectados, o FSDEA será, decerto, um elemento fundamental da economia política de Angola.
Revelando uma abordagem algo padronizada a estas questões, o FMI tem sido um defensor activo da criação do Fundo Soberano. Se for bem gerido, um Fundo deste tipo pode ser usado para controlar o impacto da volatilidade das receitas ou para pôr de lado recursos para as gerações futuras. Com reservas cambiais da ordem dos trinta e quatro mil milhões de dólares colocadas no Banco Central, este é o tipo de instrumento que se espera de Angola. No entanto, como é do conhecimento de todos os observadores dos Fundos soberanos que existem, estes não são, em si mesmos, nem uma boa nem uma má ideia; são aquilo que os decisores deles fizerem. (…)
No caso do FSDEA, embora a forma moderna e transparente como se apresenta seja tranquilizadora, os factos apontam para outra — talvez ainda mais sofisticada — estratégia do Estado paralelo (…). Por intermédio do filho, José Eduardo dos Santos (JES) detém o controlo absoluto do Fundo Soberano, cujas verbas serão maioritariamente geridas por uma consultora especializada na gestão de activos da qual é próximo.
(…) Reagindo às especulações iniciais acerca da criação de um Fundo Soberano, um conhecido economista chegou a apostar que “este é o exemplo [consumado] do sistema paralelo” e “insere-se numa estratégia de reforma de [JES]”. O mais provável é que o Presidente esteja a tentar concretizar uma combinação de objectivos estatais e privados em continuidade total com a já referida estratégia de investimento no estrangeiro prosseguida pela Sonangol. JES deseja que um Fundo Soberano moderadamente respeitável seja capaz de alcançar um sucesso plausível, no que diz respeito tanto à obtenção de retorno com o investimento realizado como à promoção da reputação do seu filho. Além disso, pretende alargar e intensificar o seu controlo sobre a economia política de Angola e as suas ramificações à escala global”.